Atravessar a emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus sem abandonar o cuidado e o afeto tem sido a preocupação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no município de Carmo, localizado na região Serrana do estado do Rio de Janeiro. Com população estimada em aproximadamente 19 mil habitantes, a cidade é um marco histórico na luta antimanicomial fluminense. Diante do contexto atual em que diversos aspectos da vida precisam ser reinventados, a criatividade e a empatia dos trabalhadores da área de Saúde Mental para promover o acolhimento e o cuidado têm sido destaque no pequeno município.
Ao adotar novas práticas de interação e comunicação aliadas às ferramentas tecnológicas, Carmo estabelece estratégias de diálogo e locais de escuta, criando, inclusive, uma rede socioafetiva virtual para o cuidado em Saúde Mental. A intenção é respeitar e incentivar o distanciamento social para diminuir a velocidade de contágio pelo novo coronavírus, sem descuidar do emocional de seus usuários, dos profissionais de saúde e da população como um todo.
Atualmente, a RAPS no município de Carmo conta com a seguinte composição: um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS Carmo), o Centro de Convivência Paula Cerqueira, quatro leitos de Referência em Saúde Mental no Hospital Geral de Retaguarda à Crise, um ambulatório de Saúde Mental, 17 residências terapêuticas (com 122 moradores), além de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em 100% do município.
Segundo a coordenadora de Saúde Mental de Carmo, Érica Victório, o Centro de Convivência e o CAPS Carmo estão com as atividades em grupo temporariamente suspensas, com atendimentos individuais apenas para os casos considerados imprescindíveis. “Neste momento de enorme desafio em que vivemos o distanciamento social, precisamos ser criativos e reinventar o cuidado às pessoas. O caminho do encontro com o outro, mesmo que virtualmente, possibilita o afeto e o cuidado e nos mostra que a distância é somente física e jamais afetiva”, explica Érica.
Ações para o cuidado a distância
O compromisso com o cuidar em Saúde Mental, ampliado para a população local e aos trabalhadores da ESF de Carmo, resultou na implantação do projeto “Terapia Comunitária Integrativa (TCI) on-line”. O TCI conta com profissionais das áreas de Psicologia e Serviço Social e busca ser uma forma de apoio em tempos de distanciamento social. A coordenadora de Saúde Mental adianta que a expectativa é estender o projeto aos profissionais da área da Educação do município, que estão em constante acompanhamento de crianças e adolescentes de forma remota.
Outras estratégias de interação reveladas pela coordenadora envolvem a produção e circulação de materiais informativos com foco na prevenção da Covid-19 e a criação de um canal de atendimento telefônico. Durante as chamadas, as equipes de plantão esclarecem dúvidas sobre o novo coronavírus e acolhem os casos de crises de angústia e ansiedade. O município também conta com o serviço 24 horas do Centro de Valorização pela Vida (CVV) para suporte emocional e prevenção do suicídio, que atende voluntária e gratuitamente todas as pessoas que precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail e chat. Os números do Disque Denúncia, para os casos de violência doméstica e infantil, também têm sido amplamente divulgados no território.
Recorrer a ações gratuitas de acolhimento on-line para apoio emocional tem acontecido com frequência em Carmo. O Serviço de Atenção à Infância e Juventude (SAIJ) compartilha materiais na rede social Instagram e promove o diálogo a partir da troca de mensagens no Messenger, contando com o apoio de profissionais qualificados da área de Psicologia de diversos serviços do município. O acolhimento acontece pelo canal “Escuta Empática”, em parceria com o Programa Saúde na Escola (PSE), com dias e horários previamente divulgados.
Em junho, foi iniciada uma ação de incentivo à formação de uma rede socioafetiva de cuidado virtual no município. A iniciativa envolve a participação de 50 mulheres na criação e publicação de podcasts. A estratégia de transmissão de mensagens pretende promover o acolhimento virtual aos interessados em compor o grupo, ser um espaço de reflexão, de resgate de histórias da vida e de mobilização, em especial, para as pessoas com dificuldades de acesso aos serviços de saúde.
No mês de abril, usuários e cuidadores do CAPS, do Centro de Convivência e das residências terapêuticas foram mobilizados a utilizar a rede social Facebook, com o objetivo de promover atividades de lazer e entretenimento em suas casas e, com isso, ajudar no enfrentamento ao distanciamento social. “Os vídeos mais curtidos foram premiados nas redes sociais. Também foram divulgados relatos e vídeos de cuidadores sobre as atividades realizadas em casa para lidar com o isolamento, em parceria com a Escola de Formação Técnica em Saúde Enfermeira Izabel dos Santos, por meio da coordenação do Curso de Cuidadores em Saúde Mental”, conta Érica.
Outra iniciativa realizada no município é a doação, pelo CAPS Carmo, de cestas básicas e kits de higiene pessoal, contendo álcool em gel, máscaras, sabonete, pasta e escova de dentes, papel higiênico, absorvente íntimo e barbeador, e do “kit artesanato” para os usuários que participam desta oficina no CAPS. Além disso, uma equipe do Serviço Social esclarece sobre o processo de inclusão dos usuários e familiares no programa de auxílio emergencial do Governo Federal.
Luta antimanicomial e redes de afeto
Carmo apresenta importante histórico na luta antimanicomial fluminense, pela sua experiência no processo de desinstitucionalização, marcado, em especial, pelo fechamento do Hospital Estadual Teixeira Brandão em 2005. O hospital psiquiátrico foi fundado em 1947 e chegou a manter 460 leitos de internação ativos. O processo de desinstitucionalização deu lugar à implantação da RAPS no município, cuja atuação se baseia em um modelo de Atenção em Saúde Mental voltado ao acesso e à promoção de direitos das pessoas, baseado na reinserção social.
Para este período de pandemia, a partir de junho, Carmo passou a contar com a iniciativa Casa de Campanha. “Este local de acolhimento é destinado aos moradores das residências terapêuticas que precisam ser hospitalizados, aos usuários que estão expostos ao risco de contaminação pelo novo coronavírus ou ainda àqueles que apresentam suspeita ou confirmação do vírus”, apresenta Érica.
A coordenadora de Saúde Mental destaca que o projeto acolheu, no mês passado, a última ex-interna do antigo hospital psiquiátrico, Wilma Machado. Internada em 1979, passou os últimos anos na Clínica Vista Alegre, em Petrópolis. “Dona Wilma foi recebida na Casa de Campanha e, depois, foi para a sua nova casa, uma residência terapêutica. Foi muito importante concluir a transferência para a residência terapêutica, onde certamente ela está mais segura, com todos os cuidados necessários”, ressalta Érica.
Além disso, Carmo tem participado do projeto “Centro de Convivência Virtual Estadual”, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que, por meio de encontros virtuais coletivos, busca melhorar a qualidade da saúde mental dos usuários e de seus familiares. O projeto oportuniza a troca de experiências com pessoas de outros centros de convivência situados nos demais municípios do estado. “Nossa história tem que romper barreiras e provar que o SUS dá certo, que é possível e justo cuidar em liberdade, que louco não é criminoso para ser confinado. E que nós, no município de Carmo, temos orgulho de conviver livremente com a loucura”, explica Érica.
Visão do cuidador sobre o momento de pandemia
Cuidadora em Saúde Mental em uma residência terapêutica em Carmo, Rosélia Martins retrata as adaptações e dificuldades que enfrenta diariamente, em decorrência das medidas de prevenção à Covid-19. A cuidadora atua em uma residência com nove moradores e conta que, há quatro meses, o serviço tem adotado diferentes medidas para lidar com a pandemia, que vão desde o uso de máscaras e álcool em gel e a troca de roupas e calçados para todos que chegam à residência, até a aquisição de equipamentos tecnológicos.
“Compramos uma televisão com acesso às redes sociais, músicas, filmes e vídeos. Nossa rotina mudou. “Deixamos de lado a convivência física que tínhamos uns com os outros e passamos para o convívio virtual”, explica Rosélia.
Para a cuidadora Cenira Sabino, o momento requer uma atenção especial para os moradores, já que a liberdade de ir e vir conquistada não pode mais existir, como as atividades presenciais no Centro de Convivência Paula Cerqueira e no CAPS Carmo. Cenira relata que tais ações foram adaptadas e têm acontecido virtualmente e com total empenho dos profissionais do Centro de Convivência, que oferecem oficinas de atividades físicas, dança e até mesmo um grupo de teatro que está em fase de criação.
“Nós, cuidadores, nunca colocamos tanto em prática o nosso trabalho como agora. Precisamos cuidar da parte física, mas muito mais da emocional neste momento. Sinto-me com o dever cumprido, pois o nosso trabalho não se restringe a somente limpar, dar banho e cortar unhas. Sinto que sou responsável também pela sensação de bem-estar deles e procuro contribuir com novas possibilidades de levar um pouco do mundo a que agora eles estão privados, para que se sintam livres e não presos por causa da pandemia”, avalia Cerina.
No dia 11 de junho, o Centro de Convivência Paula Cerqueira promoveu o “1º Arraiá Virtuá”, que contou com uma grande mobilização de cuidadores, usuários e demais profissionais para a preparação de comidas típicas e ornamentação. O evento envolveu a participação de todas as residências terapêuticas do município. Com música e quadrilha, o Arraiá possibilitou as experimentações com as atividades ofertadas nas oficinas, inclusive a contação de histórias, que faz parte do novo projeto “Quem conta um conto os males espanta”.
Em meio a tantas mudanças e adaptações que o momento atual exige, a satisfação em trabalhar com o cuidado em Saúde Mental é ressaltada em forma de acolhimento por parte dos cuidadores. “Tudo mudou, menos o cuidar. Nestes tempos de pandemia, o afeto só aumentou, pois olhamos um para o outro com mais empatia e nos colocamos um no lugar do outro. Passamos a valorizar agora até mesmo o que não tinha valor, e acredito que, juntos e com a ajuda de Deus, sairemos desta mais fortalecidos”, conclui Rosélia.
Foto: Elza Juki Fugivara e Maria da Glória Geraldo na residência terapêutica, em Carmo (RJ).